A Jurisprudência e o fumo: Uma guinada em prol dos interesses do fumante:
Lúcio Delfino – Advogado - Doutor em Direito pela PUC-SP - Autor da obra “Responsabilidade Civil e Tabagismo”Outrora, em ensaio publicado na Revista de Direito do Consumidor, afirmamos que uma guinada jurisprudencial certamente se sucederia no Brasil. Referíamos a uma alternância no entendimento dos tribunais nacionais, ainda insistentes em alicerçar uma absoluta irresponsabilidade da indústria do fumo em relação aos danos que seus produtos causam aos que deles fazem uso. Não se tratava de mero exercício de futurologia. O bom-senso e a solidez da doutrina “prol fumantes” nos levou a essa conclusão.E a verdade é que essa guinada já se principiou. Um movimento lento, mas contínuo, voltado a beneficiar aqueles que foram vítimas da ilícita estratégia perpetrada pela indústria do fumo, em afinada sintonia com o que impõe nosso ordenamento jurídico. Corrobora com essa assertiva a mais recente decisão sobre o assunto, proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.Reformando a sentença de primeiro grau, a 5ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenou a Souza Cruz S/A a pagar R$ 490 mil de indenização a uma família pela morte de um fumante. (Apelação Cível n.º 70017634486, tendo por relator o ilustre Desembargador Paulo Sérgio Scarparo, e cujo teor encontra-se disponível no site ). O acórdão é primoroso e acompanha o entendimento de outras decisões também nascidas no seio daquele notável Tribunal. Uma das questões ali enfrentadas, entretanto, merece especial destaque, justamente pela maneira diferenciada com que foi tratada: estar-se-á a se referir sobre a (falsa) concepção do livre arbítrio do fumante. É que um dos argumentos da indústria do fumo – talvez o seu “carro chefe” – mais validados pela jurisprudência funda-se nessa idéia. Isto é, para a indústria, o ato de fumar representa um mero hábito e, como tal, advém incondicionalmente de uma opção aberta e desembaraçada do próprio fumante, uma ação absolutamente voluntária, de forma que os efeitos deletérios, porventura acarretados àquele que assim decidiu agir, jamais poderiam ser impingidos às fornecedoras de cigarros, mas, sim, e exclusivamente, ao próprio tabagista. Segundo a indústria do tabaco, se o fumante é vítima de enfermidades oriundas do consumo de fumígenos, tal responsabilidade cabe exclusivamente a ele, único responsável pela infeliz opção de principiar-se no tabagismo.Em nossa tese de doutorado, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, esse argumento foi duramente combatido. E isso porque não há se falar em livre-arbítrio – conceito bastante controvertido, aliás – quando a vontade do fumante se encontra maculada por influências externas, diante das quais o indivíduo não possui controle algum. Mas aprofundemos um pouco nessa idéia.Livre-arbítrio é a “possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante” (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). É faculdade própria do homem que, pelo fato de possuir a razão, ou pela capacidade de ser racional, é capaz de escolher entre várias possibilidades. É o poder de agir de determinada forma, ou deixar de agir, sem nenhuma razão para tal escolha a não ser o próprio alvedrio; é a escolha dirigida pela vontade, de sorte que o indivíduo age de certa maneira, porque assim quer e sente-se responsável pelo ato praticado. Para que o livre-arbítrio seja exercido plenamente – ou melhor, para que efetivamente se possa falar em livre-arbítrio –, não deve haver impedimentos externos ao movimento, porquanto, nessa hipótese, a margem de atuação do alvedrio é eliminada ou, ao menos, reduzida (Trecho colhido da Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., disponível em: . Acessado em 26/08/2007).A esfera do não-eu é percebida pela consciência, a partir dos órgãos dos sentidos; toda a realidade é concebida a partir da experiência. No seu cotidiano, o homem é bombardeado, direta e indiretamente, por excitações exteriores, muitas delas responsáveis pela moldura de seu próprio caráter. Igualmente, grande parte dos hábitos, vícios e prazeres se originam desse contato com as determinações provenientes do exterior, sejam quais forem suas naturezas. A vontade humana, assim, não apresenta cunho invariável ou inatingível, podendo ser conduzida e transformada por estímulos externos, advindos de uma realidade obtida pela experiência vivenciada no mundo sensível. Daí porque sempre que se pretender alicerçar um ponto de vista com base no livre-arbítrio, será absolutamente necessário exercitar o raciocínio, visando investigar possíveis inferências externas motivadoras de um agir específico. Presentes tais inferências, obviamente que a liberdade de ação restará comprometida, já que o agente atuou, não por sua própria e exclusiva vontade, mas motivado, instigado por uma força exterior condicionante do seu agir.E depois que se deu publicidade aos “documentos secretos” da indústria do fumo tornou-se evidente a existência de interferências exteriores capazes de exterminar a tese do livre-arbítrio comumente utilizada pela indústria do fumo. É equivocada a idéia de que o tabagista fuma simplesmente porque quer. Esses “documentos secretos” evidenciam que a indústria do tabaco elaborou e concretizou estratégias de licitude questionável para garantir o sucesso das vendas de seus produtos. Já na década de 50, ou mesmo antes disso, várias dessas empresas já conheciam as características psicotrópicas da nicotina. Sabiam, também, que o consumo de cigarros causava câncer pulmonar. Ao invés de informar a sociedade acerca daquilo que descobriram, preferiram se omitir. Pior que isso, assumiram uma postura ativa voltada a difundir publicidades insidiosas, que faziam apologia sobre o produto danoso, já que o vinculavam a situações alheias as suas verdadeiras características. Assim, o cigarro era ligado ao bem-estar, ao sucesso profissional, à saúde, à sexualidade, à sensualidade, ao prazer, ao requinte, aos esportes, etc. Mas a estratégia da indústria do tabaco não ficou nisso: a) ela contratou atores e diretores de cinema para que os seus produtos fossem retratados, sempre de forma positiva, nas telas dos cinemas; b) financiou esportistas diversos, também com a intenção de garantir uma imagem socialmente aceitável acerca do tabagismo; c) contratou cientistas e empresas de relações públicas para combater aquelas pesquisas que surgiam, cada vez com mais intensidade, vinculando o tabagismo a diversas doenças. (Esses “documentos secretos” são representados por 40 milhões de páginas de documentos internos da indústria do fumo, os quais podem ser consultados pela internet (), encontrando-se, ainda, à disposição, no arquivo oficial de Minnesota e em Guilford Surrey nos arredores de Londres).Obviamente que toda essa técnica publicitária, verdadeiramente insidiosa, abusiva e enganosa, difundida pela indústria do fumo anos e anos a fio, prejudica, ainda hoje, o consumidor brasileiro, criando dúvidas em seu subconsciente, induzindo-o a subestimar os malefícios gerados pelo consumo de cigarros. Daí se vê a presença irretorquível de estímulos externos, em sua grande maioria perpetrados pela própria indústria do fumo, engendrados com o intuito único de motivar o consumo de cigarros, isso mediante a construção pensada de uma atmosfera socialmente favorável ao tabagismo, cuja influência atinge, principalmente, os mais jovens, pessoas ainda em formação física e mental, presas fáceis dessa estratégia assustadoramente comprovada em vários dos “documentos secretos”, especialmente aqueles a indicar serem eles, os jovens, que “representam o negócio de cigarros do amanhã”.Não só isso. A liberdade de opção do fumante também resta prejudicada depois que ele se torna dependente. Afirme-se que, hodiernamente, a ciência médica encara o tabagismo como sendo uma doença-crônica. Aliás, a Organização Mundial de Saúde, desde 1992, cataloga o tabagismo na Classificação Internacional de Doenças – Capítulo F12.2, síndrome da tabaco-dependência. Na mesma senda, afirme-se que a Associação Americana de Psiquiatria vê a nicotino-dependência como uma desordem mental pelo uso de substância psicoativa. De tal sorte, do mesmo modo que um hipertenso necessita adotar novos hábitos, sem abrir mão do auxílio de remédios, a maioria dos fumantes também necessita de ajuda, não bastando apenas sua força de vontade para que abdique do vício do cigarro. Numa única frase: o tabagismo não só causa doenças como também é uma doença.Implantada a dependência, e faltando o aporte de nicotina nos centros nervosos, surge disforia e um quadro clínico de sintomas desagradáveis, denominado “síndrome de abstinência” – quadro esse caracterizado por um forte desejo de fumar, ansiedade, inquietação, irritabilidade, distúrbios do sono, dificuldade de concentração, além de outros sintomas. A intensidade da síndrome de abstinência varia com o grau da dependência. (ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003. p. 28).É a nicotina, pois, a grande vilã responsável pelo desencadeamento da dependência químico-física no organismo do tabagista. Se tal substância não fizesse parte da composição do produto perigoso, o seu consumo seria considerado unicamente um hábito, podendo ser abandonado sem maiores dificuldades. Aponte-se, ainda, a constatação de que são suficientes algumas tragadas de fumo, ou mesmo a administração de nicotina por qualquer via, para que os sintomas desagradáveis desapareçam, voltando a euforia, isso unicamente para reforçar a compreensão de que é, sim, a nicotina a substância responsável pelos distúrbios que surgem ao cessar de fumar (síndrome de abstinência). (ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003. p. 28).Portanto, é curiosa a afirmativa de que ao tabagista bastaria uma decisão sua para abandonar o cigarro. Se para o doente bastasse a sua vontade para se curar, o problema mundial envolvendo a saúde pública estaria resolvido. Não haveria mais enfermos no mundo, simplesmente porque ninguém, em boas condições mentais, pretende permanecer num estado constante de morbidade. É, pois, mais do que óbvia a constatação de que é insuficiente, na grande maioria dos casos, a mera intenção do doente para que se restabeleça. É indispensável fornecer-lhe tratamento adequado, voltado a debelar, ou, ao menos, minimizar a sua enfermidade. E se o tabagismo realmente é uma doença – e a ciência o vem encarando como tal –, salta à vista que a grande maioria dos fumantes apenas terá condições de renunciar ao tabaco se submetida a tratamentos eficientes, capazes de aliviá-la de seu mal.E foi justamente essa a linha de raciocínio adotada pelo acórdão gaúcho supra citado, capitaneado pelo substancioso voto do insigne Desembargador Paulo Sergio Scarparo, especialmente quando afirma que “não há falar em liberalidade/voluntariedade do usuário do tabaco. Isso porque, a voluntas do indivíduo estava maculada, quer pela ausência de informações a respeito dos malefícios do produto, seja pela dependência química causada por diversos componentes, especialmente, pela nicotina.”Enfim, essa mais nova decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul dá ensejo a comemorações. Afinal, representa exemplo vivo da guinada jurisprudencial alhures apontada, norteada a favorecer interesses daqueles que amargam prejuízos em razão do consumo de fumígenos, e não simplesmente por compaixão, numa tese vazia de sentido, senão pelo fato de que o nosso ordenamento jurídico encontra-se apto para alicerçar tutelas jurisdicionais ressarcitórias fundadas no abuso do direito e na responsabilidade pelo fato do produto.
Fonte : Lúcio Delfino – Advogado - Doutor em Direito pela PUC-SP - Autor da obra “Responsabilidade Civil e Tabagismo”
Lúcio Delfino – Advogado - Doutor em Direito pela PUC-SP - Autor da obra “Responsabilidade Civil e Tabagismo”Outrora, em ensaio publicado na Revista de Direito do Consumidor, afirmamos que uma guinada jurisprudencial certamente se sucederia no Brasil. Referíamos a uma alternância no entendimento dos tribunais nacionais, ainda insistentes em alicerçar uma absoluta irresponsabilidade da indústria do fumo em relação aos danos que seus produtos causam aos que deles fazem uso. Não se tratava de mero exercício de futurologia. O bom-senso e a solidez da doutrina “prol fumantes” nos levou a essa conclusão.E a verdade é que essa guinada já se principiou. Um movimento lento, mas contínuo, voltado a beneficiar aqueles que foram vítimas da ilícita estratégia perpetrada pela indústria do fumo, em afinada sintonia com o que impõe nosso ordenamento jurídico. Corrobora com essa assertiva a mais recente decisão sobre o assunto, proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.Reformando a sentença de primeiro grau, a 5ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenou a Souza Cruz S/A a pagar R$ 490 mil de indenização a uma família pela morte de um fumante. (Apelação Cível n.º 70017634486, tendo por relator o ilustre Desembargador Paulo Sérgio Scarparo, e cujo teor encontra-se disponível no site ). O acórdão é primoroso e acompanha o entendimento de outras decisões também nascidas no seio daquele notável Tribunal. Uma das questões ali enfrentadas, entretanto, merece especial destaque, justamente pela maneira diferenciada com que foi tratada: estar-se-á a se referir sobre a (falsa) concepção do livre arbítrio do fumante. É que um dos argumentos da indústria do fumo – talvez o seu “carro chefe” – mais validados pela jurisprudência funda-se nessa idéia. Isto é, para a indústria, o ato de fumar representa um mero hábito e, como tal, advém incondicionalmente de uma opção aberta e desembaraçada do próprio fumante, uma ação absolutamente voluntária, de forma que os efeitos deletérios, porventura acarretados àquele que assim decidiu agir, jamais poderiam ser impingidos às fornecedoras de cigarros, mas, sim, e exclusivamente, ao próprio tabagista. Segundo a indústria do tabaco, se o fumante é vítima de enfermidades oriundas do consumo de fumígenos, tal responsabilidade cabe exclusivamente a ele, único responsável pela infeliz opção de principiar-se no tabagismo.Em nossa tese de doutorado, defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, esse argumento foi duramente combatido. E isso porque não há se falar em livre-arbítrio – conceito bastante controvertido, aliás – quando a vontade do fumante se encontra maculada por influências externas, diante das quais o indivíduo não possui controle algum. Mas aprofundemos um pouco nessa idéia.Livre-arbítrio é a “possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante” (Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa). É faculdade própria do homem que, pelo fato de possuir a razão, ou pela capacidade de ser racional, é capaz de escolher entre várias possibilidades. É o poder de agir de determinada forma, ou deixar de agir, sem nenhuma razão para tal escolha a não ser o próprio alvedrio; é a escolha dirigida pela vontade, de sorte que o indivíduo age de certa maneira, porque assim quer e sente-se responsável pelo ato praticado. Para que o livre-arbítrio seja exercido plenamente – ou melhor, para que efetivamente se possa falar em livre-arbítrio –, não deve haver impedimentos externos ao movimento, porquanto, nessa hipótese, a margem de atuação do alvedrio é eliminada ou, ao menos, reduzida (Trecho colhido da Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., disponível em: . Acessado em 26/08/2007).A esfera do não-eu é percebida pela consciência, a partir dos órgãos dos sentidos; toda a realidade é concebida a partir da experiência. No seu cotidiano, o homem é bombardeado, direta e indiretamente, por excitações exteriores, muitas delas responsáveis pela moldura de seu próprio caráter. Igualmente, grande parte dos hábitos, vícios e prazeres se originam desse contato com as determinações provenientes do exterior, sejam quais forem suas naturezas. A vontade humana, assim, não apresenta cunho invariável ou inatingível, podendo ser conduzida e transformada por estímulos externos, advindos de uma realidade obtida pela experiência vivenciada no mundo sensível. Daí porque sempre que se pretender alicerçar um ponto de vista com base no livre-arbítrio, será absolutamente necessário exercitar o raciocínio, visando investigar possíveis inferências externas motivadoras de um agir específico. Presentes tais inferências, obviamente que a liberdade de ação restará comprometida, já que o agente atuou, não por sua própria e exclusiva vontade, mas motivado, instigado por uma força exterior condicionante do seu agir.E depois que se deu publicidade aos “documentos secretos” da indústria do fumo tornou-se evidente a existência de interferências exteriores capazes de exterminar a tese do livre-arbítrio comumente utilizada pela indústria do fumo. É equivocada a idéia de que o tabagista fuma simplesmente porque quer. Esses “documentos secretos” evidenciam que a indústria do tabaco elaborou e concretizou estratégias de licitude questionável para garantir o sucesso das vendas de seus produtos. Já na década de 50, ou mesmo antes disso, várias dessas empresas já conheciam as características psicotrópicas da nicotina. Sabiam, também, que o consumo de cigarros causava câncer pulmonar. Ao invés de informar a sociedade acerca daquilo que descobriram, preferiram se omitir. Pior que isso, assumiram uma postura ativa voltada a difundir publicidades insidiosas, que faziam apologia sobre o produto danoso, já que o vinculavam a situações alheias as suas verdadeiras características. Assim, o cigarro era ligado ao bem-estar, ao sucesso profissional, à saúde, à sexualidade, à sensualidade, ao prazer, ao requinte, aos esportes, etc. Mas a estratégia da indústria do tabaco não ficou nisso: a) ela contratou atores e diretores de cinema para que os seus produtos fossem retratados, sempre de forma positiva, nas telas dos cinemas; b) financiou esportistas diversos, também com a intenção de garantir uma imagem socialmente aceitável acerca do tabagismo; c) contratou cientistas e empresas de relações públicas para combater aquelas pesquisas que surgiam, cada vez com mais intensidade, vinculando o tabagismo a diversas doenças. (Esses “documentos secretos” são representados por 40 milhões de páginas de documentos internos da indústria do fumo, os quais podem ser consultados pela internet (), encontrando-se, ainda, à disposição, no arquivo oficial de Minnesota e em Guilford Surrey nos arredores de Londres).Obviamente que toda essa técnica publicitária, verdadeiramente insidiosa, abusiva e enganosa, difundida pela indústria do fumo anos e anos a fio, prejudica, ainda hoje, o consumidor brasileiro, criando dúvidas em seu subconsciente, induzindo-o a subestimar os malefícios gerados pelo consumo de cigarros. Daí se vê a presença irretorquível de estímulos externos, em sua grande maioria perpetrados pela própria indústria do fumo, engendrados com o intuito único de motivar o consumo de cigarros, isso mediante a construção pensada de uma atmosfera socialmente favorável ao tabagismo, cuja influência atinge, principalmente, os mais jovens, pessoas ainda em formação física e mental, presas fáceis dessa estratégia assustadoramente comprovada em vários dos “documentos secretos”, especialmente aqueles a indicar serem eles, os jovens, que “representam o negócio de cigarros do amanhã”.Não só isso. A liberdade de opção do fumante também resta prejudicada depois que ele se torna dependente. Afirme-se que, hodiernamente, a ciência médica encara o tabagismo como sendo uma doença-crônica. Aliás, a Organização Mundial de Saúde, desde 1992, cataloga o tabagismo na Classificação Internacional de Doenças – Capítulo F12.2, síndrome da tabaco-dependência. Na mesma senda, afirme-se que a Associação Americana de Psiquiatria vê a nicotino-dependência como uma desordem mental pelo uso de substância psicoativa. De tal sorte, do mesmo modo que um hipertenso necessita adotar novos hábitos, sem abrir mão do auxílio de remédios, a maioria dos fumantes também necessita de ajuda, não bastando apenas sua força de vontade para que abdique do vício do cigarro. Numa única frase: o tabagismo não só causa doenças como também é uma doença.Implantada a dependência, e faltando o aporte de nicotina nos centros nervosos, surge disforia e um quadro clínico de sintomas desagradáveis, denominado “síndrome de abstinência” – quadro esse caracterizado por um forte desejo de fumar, ansiedade, inquietação, irritabilidade, distúrbios do sono, dificuldade de concentração, além de outros sintomas. A intensidade da síndrome de abstinência varia com o grau da dependência. (ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003. p. 28).É a nicotina, pois, a grande vilã responsável pelo desencadeamento da dependência químico-física no organismo do tabagista. Se tal substância não fizesse parte da composição do produto perigoso, o seu consumo seria considerado unicamente um hábito, podendo ser abandonado sem maiores dificuldades. Aponte-se, ainda, a constatação de que são suficientes algumas tragadas de fumo, ou mesmo a administração de nicotina por qualquer via, para que os sintomas desagradáveis desapareçam, voltando a euforia, isso unicamente para reforçar a compreensão de que é, sim, a nicotina a substância responsável pelos distúrbios que surgem ao cessar de fumar (síndrome de abstinência). (ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003. p. 28).Portanto, é curiosa a afirmativa de que ao tabagista bastaria uma decisão sua para abandonar o cigarro. Se para o doente bastasse a sua vontade para se curar, o problema mundial envolvendo a saúde pública estaria resolvido. Não haveria mais enfermos no mundo, simplesmente porque ninguém, em boas condições mentais, pretende permanecer num estado constante de morbidade. É, pois, mais do que óbvia a constatação de que é insuficiente, na grande maioria dos casos, a mera intenção do doente para que se restabeleça. É indispensável fornecer-lhe tratamento adequado, voltado a debelar, ou, ao menos, minimizar a sua enfermidade. E se o tabagismo realmente é uma doença – e a ciência o vem encarando como tal –, salta à vista que a grande maioria dos fumantes apenas terá condições de renunciar ao tabaco se submetida a tratamentos eficientes, capazes de aliviá-la de seu mal.E foi justamente essa a linha de raciocínio adotada pelo acórdão gaúcho supra citado, capitaneado pelo substancioso voto do insigne Desembargador Paulo Sergio Scarparo, especialmente quando afirma que “não há falar em liberalidade/voluntariedade do usuário do tabaco. Isso porque, a voluntas do indivíduo estava maculada, quer pela ausência de informações a respeito dos malefícios do produto, seja pela dependência química causada por diversos componentes, especialmente, pela nicotina.”Enfim, essa mais nova decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul dá ensejo a comemorações. Afinal, representa exemplo vivo da guinada jurisprudencial alhures apontada, norteada a favorecer interesses daqueles que amargam prejuízos em razão do consumo de fumígenos, e não simplesmente por compaixão, numa tese vazia de sentido, senão pelo fato de que o nosso ordenamento jurídico encontra-se apto para alicerçar tutelas jurisdicionais ressarcitórias fundadas no abuso do direito e na responsabilidade pelo fato do produto.
Fonte : Lúcio Delfino – Advogado - Doutor em Direito pela PUC-SP - Autor da obra “Responsabilidade Civil e Tabagismo”
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